Terça-feira, 27 de Janeiro de 2009

"A crítica está sempre a favor do Cinema"

São raras as ocasiões em que a imagem virtual que criamos de uma pessoa da qual conhecemos as palavras mas não as feições corresponde, quase na totalidade, à realidade. Esta foi uma dessas vezes. Luís Miguel Oliveira, o homem, é praticamente igual a Luís Miguel Oliveira, o crítico de Cinema sem imagem do Público que escreve alguns dos melhores textos sobre imagens em movimento da nossa imprensa. Nascido em Tomar há trinta e oito anos, cedo rumou a Lisboa. Formou-se em Comunicação Social (hoje Ciências da Comunicação) na Universidade Nova de Lisboa em 1993, e desde então trabalha na Cinemateca, onde contribuiu para, e ocasionalmente organiza, os livros que esta vai editando. No bar do Museu do Cinema, entre cigarros, falou de crítica, do poder demoníaco da televisão e, claro, de filmes.  

 

Exercícios de escrita

 

Mantém um blogue, no qual escreve com um tom mais pessoal, mais descontraído, menos jornalístico do que outros jornalistas que os mantêm. É uma forma de escapar aos constrangimentos editoriais do Público?

 

Julgo que há aquilo a que chamamos protocolos de escrita. O blogue é se calhar uma forma livre desses protocolos, longe daqueles que tenho no Público ou mesmo na Cinemateca. Não é propriamente uma coisa em que pense muito, não vou dizer que há qualquer espécie de premeditação ou de projecto subjacente. Há vários registos diferentes e várias maneiras de fugir a um modelo único de escrita. Mas sim, essencialmente é uma forma mais pessoal, mais informal, mas próxima da conversa de café. Se alguém me obrigasse a escrever no blogue da maneira que escrevo em outros sítios acho que não valia a pena.

 

Ao fim de um dia a escrever, seja para o Público ou nas Edições da Cinemateca, o que o faz ter vontade de escrever ainda mais?

 

É uma boa pergunta. No fim de um dia a dar consultas um médico não vai para casa dá-las por prazer. A escrita é um bocado isso mas, primeiro, não escrevo todos os dias. Há alturas em que não apetece mesmo escrever uma linha que seja. Por outro lado há essa não obrigação, o lado de passatempo. O blogue é só um certo prazer, um certo gosto da escrita, não há mais nada envolvido. E antes disso, talvez um certo gozo, que pode ser mais ou menos provocatório, de soltar algumas ideias, algumas observações. Apesar de tudo, e isto pode parecer um bocado paradoxal, a maior parte das coisas que ponho no blogue não vejo sequer como exercícios de escrita. A escrita é uma coisa que dá algum trabalho e mesmo quando não implica qualquer tipo de pesquisa especial implica sempre algum trabalho intelectual. A diferença no blogue é quase essa ausência de trabalho. Não diria que é escrita automática, à surrealista…

 

Não é um stream of consciousness

 

Sim, mas é uma coisa muito mais solta.

 

Reparei, ainda falando do blogue, que mantém habitualmente um tom de quase auto-flagelação, como se nunca estivesse satisfeito. É um eterno insatisfeito?

 

De certa maneira. Descontando o lado humorístico, acho que sim. Nem falo da perfeição, que por definição é uma coisa inatingível, mas fico várias vezes com essa sensação, e ainda bem, porque se calhar é isso que faz as pessoas continuarem. Imagino que é um bocado como no desporto, como um sprinter que não consegue baixar para o décimo que queria…

 

Mas há quem lhe diga que escreve bem...

 

Há quem diga isso e há quem diga o contrário (risos). Consigo ter uma certa noção do ponto em que estou. Sei que não sou um Dostoiévski, mas também sei que não sou um analfabeto. Algures entre estes dois extremos estarei.

 

Orienta-se pelo pragmatismo de Howard Hawks? Consegue olhar para o que escreveu e, se não gostar, seguir em frente?

 

Sim, não quer dizer que consiga fazer isso, mas acho que é um bom princípio. Se está feito, está feito. Se penso “não consigo fazer nada por isto”, é melhor largar e pensar no próximo. Não quer dizer que consiga pôr sempre esse pragmatismo em prática a cem por cento, mas como guia de actuação parece-me um bom princípio, seja para o que for.

 

Cinema e Televisão

 

Escreve sobre Cinema, mas afirmou que o Cinema é uma coisa diabólica e que o seu lado mais perverso é a fonte onde a civilização da imagem e da sua manipulação foram buscar as suas ideias. Há aqui alguma contradição, ou há uma atracção por este lado perverso também?

 

Acho que sim. São duas coisas diferentes. É óbvio que, digamos, a um nível histórico, a pré-história de muitas das coisas que hoje associamos à civilização da imagem, à imagem como comunicação quase no sentido político, publicitário, se encontra no Cinema. As grandes concepções da propaganda política tais como as conhecemos hoje começaram por ser inventadas no Cinema. O [Sergei] Eisenstein, na altura da Revolução Soviética, depois a [Leni] Riefenstahl…

 

Na Alemanha nazi…

 

Acho que, de alguma maneira, a televisão, que substitui o Cinema como grande meio de comunicação de massas e se tornou se tornou no principal expoente dessa civilização da imagem, absorveu e integrou muitos desses princípios. Há aqui um lado potencialmente maléfico, isto sem tentar fazer um juízo moralista sobre o trabalho do Eisenstein e da Riefenstahl, no sentido mais abstracto, de grande manipulação colectiva de pessoas. A televisão reproduz isso de alguma maneira, nas coisas mais anódinas, que podem ser um discurso declaradamente político ou um discurso publicitário. Há uma série de princípios e de fundamentos que começaram por ser representados no Cinema, e nesse sentido há nele um lado quase diabólico. Podemos vê-lo quase como o ovo da serpente, sendo a serpente esta civilização da imagem. Há um texto de um crítico francês que diz que nunca seria possível falar em massas antes do Cinema. No tempo da Pintura, da Fotografia, não havia massas, havia multidões. A ideia da massa foi vista pela primeira vez no Cinema. Aí estamos mais próximos ainda do ovo da serpente, porque ele fazia depender o aparecimento das grandes ideologias políticas do Século XX do próprio aparecimento do Cinema, como se sem ele as coisas pudessem não ter sido bem assim. É evidente que se calhar o Cinema que nos toca mais é aquele que não só nos implica as emoções e o intelecto, mas que nos desperta as contradições entre aquilo que é da ordem da natureza humana, e aquilo que é da ordem dos nossos adquiridos, em termos culturais ou civilizacionais. Aquilo que é o nosso verniz racional, cultural, muitas vezes entra em choque com os nossos instintos, que têm a ver com um fundo primário, instintivo, animal. Penso que o [John] Carpenter faz isso muito bem, naqueles filmes sobre vingança, sobre a questão da moral que, ao fim ao cabo, é uma concepção puramente racional e o maior dos nossos adquiridos. É um processo que o Cinema faz de forma diferente, por exemplo, da Literatura. Talvez o seu lado mais directo, mais emocional, seja um instrumento propício.

 

Assume frequentemente uma posição muito crítica em relação à televisão. Afirmou que ela só tem interesse quando é em directo e, principalmente, quando filma a espera. Quando é que o Cinema tem interesse?

 

(risos) Se calhar também é quando filma a espera. Depende, é difícil estar a reduzir isso a uma afirmação peremptória e exclusivista. A televisão obedece a uma lógica de acontecimento permanente e aguenta mal o silêncio. Vemos isso por exemplo em transmissões desportivas, porque o comentador não aguenta estar dois segundos sem dizer alguma coisa. Nos directos vê-se isso muito bem. Acho isso [a espera] fascinante na televisão, que tem horror a esse não acontecimento, por uma questão de natureza. Quando o Papa João Paulo II estava a morrer, havia directos longuíssimos com planos fixos da fachada do hospital. Isso é uma coisa que a televisão só consegue fazer no directo, uma espécie de narrativa da suspensão. É nesses momentos que a televisão recupera de alguma maneira essa ideia de fixidez, que associo muito mais ao Cinema. Mesmo no Cinema que constituiu o primado da narrativa, no Cinema clássico Americano, acho que os momentos que o tornam especial são aqueles em que a narrativa pára, e fica uma contemplação. No My Darling Clementine, do [John] Ford, há uma cena de baile em que não se passa nada. É nesses momentos de respiração, de equilíbrio da narrativa, que se torna claro que mesmo o grande Cinema narrativo é um bocadinho mais que só a narrativa. São as pausas, os momentos em que o Cinema fica sozinho consigo próprio. Podemos dizer que no Cinema moderno inverteu-se a relação de proporções e a narrativa foi para os cantos. É verdade, mas se calhar é mais interessante constatar isso em filmes mais narrativos. Um exemplo pré-clássico é o Nanook of the North, do [Robert J.] Flaherty. Há um momento fabuloso aí, em que ele abre um buraco para pescar e ficamos a observar enquanto ele espera que o peixe morda. Se calhar isso tem a ver um bocadinho mais com a vida. As coisas não estão sempre a acontecer. Se calhar é mais realista filmar a acção incluindo à espera ou até a espera por uma acção que não chega, do que filmar o acontecimento constante.

 

Falou da inacção do Cinema de agora, o que acontece sobretudo nos Cinemas Europeu e Asiático. Será uma forma de responder àquilo em que o Cinema Americano se tornou?

 

Não sei se há necessariamente uma resposta. Hoje em dia o grande público associa o grande modelo narrativo ao modelo americano, como se todo o outro Cinema existisse para tentar ser como ele. Se não o consegue é porque é chato, porque os planos duram dez minutos, como se fosse um falhanço intrínseco, como se o filme fosse assim porque não conseguiu ser como um filme Americano. São esses os comentários típicos aos filmes do Manoel de Oliveira, por exemplo. Parece-me evidente que, se os planos duram aquele tempo não é porque ele não os conseguiu fazer mais curtos. Não é propriamente um falhanço. Há outras coisas, outras formas de fazer Cinema. O Cinema não é só uma coisa. Mas sempre houve ritmos diferentes, e encontramo-los também no Cinema Americano. Um filme do [David] Lynch não é a mesma coisa que um filme do Tony Scott. Não é assim tão monolítico quanto isso, nunca foi. Mas as coisas que têm mais publicidade, que chegam a um público mais numeroso, obedecem a um tipo de características que acabam por ser muito parecidas. E isso favorece a ideia dessa espécie de ideal de modelo de fazer Cinema à beira do qual todos os outros empalidecem. Nesse sentido é importante falar dos Cinemas Asiático e Europeu como tradições cinematográficas nem melhores nem piores, mas diferentes.

 

Escreveu recentemente que, por volta de 77/78, quando estrearam na televisão o Amor de Perdição de Manoel de Oliveira e Gabriela Cravo e Canela, Portugal escolheu o caminho da telenovela. Ainda é possível inverter a tendência?

 

Eu acho que o problema de Portugal com o Cinema é um problema mais vasto. Portugal nunca teve uma tradição cinematográfica muito forte. Nem sequer o regime de Salazar usou o Cinema como outros regimes usaram na altura; a nossa produção de propaganda foi fraquíssima. Não temos nada que se compare, não só em termos de qualidade, mas de projecto, a uma Riefenstahl ou a um Eisenstein. A Salazar interessava pouco o Cinema, porque Portugal era um país muito mais atrasado, em termos de infra-estruturas, que a Espanha, a Itália ou a Alemanha. Nunca houve uma tradição cinematográfica muito forte por razões que se prendem com esse atraso estrutural. A História da relação dos portugueses com o Cinema não é tão comparável assim com a de outros países. Apesar de haver uma altura em que havia cinemas nas cidades do interior, onde hoje praticamente não os há, os grandes centros cinematográficos foram sempre Lisboa e Porto, o que seria exagerado confundir com o país inteiro. A tendência não se vai inverter, antes pelo contrário. Esta história da instalação da Cinemateca no Porto, por exemplo… O que está em questão é uma cidade intelectualmente rica e com uma série de instituições culturais sólidas e importantes, mas onde as pessoas se queixam da inexistência de cinemas, de algo que lhes permita um acesso à cultura cinematográfica de uma maneira diferente da permitida pelos multiplexes.

 

Isso vê-se pelas estreias centralizadas em Lisboa. Não há, por exemplo, um [cinema] King no Porto…

 

Exacto. É isso, mas acho que, ao mesmo tempo, o que é dramático nisso é que, enfim, é essa a lei do mercado. Se houvesse público em quantidade suficiente para existir um King no Porto, provavelmente ele existia. Se mesmo o King de Lisboa tem dificuldades, isso é que é dramático. Nunca houve a tal tradição cinematográfica, e mesmo os mais intelectuais nunca ligaram muito ao Cinema, com algumas excepções, como o Jorge de Sena. É preciso ver que muitas das coisas com que os cineastas portugueses, não só o Oliveira mas também os do Cinema Novo, o Paulo Rocha, o Fernando Lopes, se relacionavam nos seus filmes não tinham sido vistas cá, por serem comercialmente desinteressantes ou porque a censura não tinha deixado. O problema do “divórcio” do público Português com o Cinema Português radica daí. O caso do Oliveira é evidente. Não é que ele se estivesse a relacionar com algum Cinema em particular, porque eu acho que o Oliveira é um caso à parte, que tem um lado instintivo muito grande, como se as coisas nascessem ali, mas qualquer pessoa que conhecesse o [Jean-Marie] Straub, o [Hands-Jürgen] Syberberg ou uma série de outros cineastas que trabalharam muito nesta fronteira com o que é da ordem do literário, do teatral, não teria achado o Amor de Perdição um choque assim tão grande. Perceberia o tipo de preocupação estética que ali estava e o tipo de corrente em que o filme podia ser inserido. A reacção mais comum a esse filme e à maior parte do Cinema Português vai ao encontro do que estávamos a dizer há bocado, como se o Cinema tivesse que ser só a aplicação de uma receita. O público Português tolera mal o Cinema como espaço de liberdade para além dos cânones, em grande parte devido a uma certa falta de reconhecimento dele enquanto expressão artística que não se esgota na ilustração de uma história. Se formos ver os números de espectadores, constatamos que o tipo de relação que o público mantém com o Cinema Português é o mesmo que mantém com os Cinemas Europeu e Asiático. O facto de ser Português torna apenas mais exposta e mais evidente essa fractura. O público Português tem um problema com o Cinema não-Americano.

 

Há aquela ideia do “não viu, mas tem a certeza”.

 

Pois, é um bocado isso. É um bocado incontrolável, porque a quantidade de clichés sobre o Cinema Português que são reproduzidos por pessoas que nem sequer viram os filmes…

 

Ia perguntar se seria plausível pensar num tempo em que um filme, por exemplo, do Pedro Costa, passaria na televisão e teria audiência…

 

Eu nem coloco a questão assim. Não se trata de desejar que um filme do Pedro Costa seja um sucesso de audiência na televisão. Trata-se quase só de garantir que lhe é reconhecido o direito a existir. É quase tão liminar quanto isto. É evidente que esse filme não será um êxito de bilheteira nem aqui nem em lado nenhum. A diferença é que esta cultura anti-cinematográfica tem tendência a tornar-se mais agressiva e não tarda muito será esse direito que estará em causa. E acho que a televisão não faz muito para ajudar. Eu cresci nos anos 80 e vi filmes na RTP2 que hoje é impensável num qualquer canal de televisão. Filmes mudos, filmes a preto e branco antigos, filmes russos…

 

A RTP2 continua a fazer dessas sessões, ao Sábado à noite, mas são coisas escassas…

 

Mas são muito espaçadas, e não sei a que horas fazem isso. Estou a falar de uma altura em que víamos Cinema na RTP às nove da noite, e podia passar o Andrey Rublyov, por exemplo. Hoje em dia parece impensável, não é? Um filme a preto e branco, falado em russo, às nove da noite? É algo que a televisão já encontrou maneira de albergar dentro de si e depois começou a cuspir. Tendo em conta que, se vivo em Bragança ou assim, a minha maneira de conhecer esses filmes seria na televisão, porque obviamente não tenho uma Cinemateca, ou uma sala de reprise ali ao pé, e provavelmente nem uma loja de DVDs, nunca vou conhecer aquilo. Não percebo como é que assim é possível ter uma relação com o Cinema enquanto legado, enquanto património cultural, histórico, profundamente diversificado em termos estéticos, geográficos e temporais. Um miúdo de doze anos exposto, quem diz ao [Andrey] Tarkovsky diz a outro qualquer, pelo menos percebe que há outra coisa, e depois pode ir atrás disso ou não. Hoje em dia, tenho dúvidas que um miúdo dessa idade, seja em Lisboa ou em Bragança, tenha essa noção de que o Cinema é outra coisa para além da Angelina Jolie e do Brad Pitt, e isso é tramado.

 

São contextos diferentes, mas estava a pensar num jovem Martin Scorcese, algures em Nova-Iorque, a ver na televisão os filmes do [Roberto] Rossellini, do [Federico] Fellini e, no fundo, a formar-se. Coisa que aqui não pode acontecer.

 

Sim, claro. A questão é que tu vendo aquilo tens pelo menos uma noção e achas menos estranho que de repente haja uma coisa que não é o Brad Pitt ao tiros…

 

É um choque.

 

Pois, é um choque e as pessoas não sabem como lidar com isso, e rejeitam. Eu não faço a mínima ideia qual é a relação do Cinema com a escola noutros países, mas sei que em Portugal fiz o Liceu todo sem sequer saber que existia Cinema, em termos de currículo. Mesmo quando falávamos de outras áreas artísticas, o Cinema não existia. Não há qualquer preparação. Mas no fundo é quase assim em relação às outras artes. Lembro-me que no oitavo ou no nono ano tive uma cadeira chamada Educação Visual. Pensei que seria uma mínima educação da sensibilidade visual, mostrar quadros, uma noção da História da Pintura, eventualmente Cinema. Mas não, a Educação Visual é gasta a fazer elipses, desenhar círculos e não sei o quê. Isso não é Educação Visual, é Educação Manual. Eu fiz o Liceu sem a mais pequena introdução à Arte e à História da Arte.

 

Críticas da crítica

 

Uma questão várias vezes levantada é a do “elitismo” da crítica de Cinema em Portugal, muitas vezes sem conhecimento de causa. Temos boa “crítica à crítica”?

 

Eu acho que não (risos). É frequente encontrar críticas à crítica na internet. Em primeiro lugar, há um défice democrático, de tolerância ao desacordo. A maior parte das vezes não são outras ideias que são confrontadas com aquilo que escreveste, são desqualificações, são insultos, com os quais não se aprende nada. Nunca se avança muito para além daí. Não se põem as coisas a um nível discursivo, conceptual. Se eu escrevo um texto que provoca reacções, raramente encontro entre elas uma resposta ao texto e ao que lá está escrito. Nesse aspecto acho que não há muito boa crítica à crítica.

 

Mas não há também alguma culpa da crítica nesta desconfiança por parte do público? Não tem necessariamente a ver connosco, mas nos Estados Unidos, no ano passado, [o crítico do Chicago Sun-Times] Roger Ebert criticou negativamente um filme do qual apenas tinha visto oito minutos. Precedente perigoso, vindo de alguém com a popularidade e responsabilidade de Ebert. Não há nada que se lhe assemelhe aqui?

 

Que eu conheça, não há nenhum caso. Evidentemente é uma coisa difícil de justificar. Não me parece mal que uma pessoa veja oito minutos de um filme e diga mal desses oito minutos. Agora…

 

Principalmente vindo de quem vem.

 

Pois, é sobretudo isso. Uma pessoa tão influente e tão exposta como o Ebert fazer isso parece-me um bocado injustificável. Mas também não me parece que daí se possa tirar alguma conclusão mais genérica. O maior problema que se põe é para quem se está a escrever, qual o leitor que se pressupõe. Ninguém aguenta pressupor o leitor a quem é preciso explicar o bê-á-bá todo. É muito cansativo estar sempre a repetir as mesmas ideias. Eu reparei que quando estreou o Juventude em Marcha, os críticos Norte-Americanos faziam sempre um aviso, uma espécie de preparação do leitor. Se calhar às vezes é preciso fazer isso, repetir uma série de coisas que para nós são adquiridas e evidentes, mas que para o comum leitor que não tem nenhuma relação especial com os objectos de que estamos a falar talvez seja importante. Quando se fazem referências à História do Cinema, por exemplo. Mas não posso pressupor que estou a escrever para um leitor que não sabe nada do assunto, senão não consigo escrever texto nenhum. Prefiro pressupor um leitor que viu as coisas que eu vi e leu as coisas que eu li. Parece-me a maneira mais honesta, de certa maneira. Acho que o maior respeito que se pode ter pelo leitor é tratá-lo como um igual. É isso que tento fazer. Se faço isso bem ou não é outra questão.

 

[O crítico de Cinema] Adrian Martin afirmou recentemente em entrevista que a crítica trata-se de uma constante recriação do Cinema, que o mantém vivo e ajuda a criar o seu futuro. Sente-se parte de um processo inerente ao Cinema?

 

Julgo que sim. Não eu, pessoalmente, mas é evidente que, falando em termos ideais, teóricos, abstractos mas com efeitos práticos, pela crítica passa um constante reavivar da História do Cinema, como património. É uma maneira de o manter vivo, de o actualizar, de o articular. De lhe aproximar coisas de que ninguém se tinha lembrado. A História do Cinema torna-se uma coisa sempre dinâmica, aberta e actuante, principalmente se conseguirmos estabelecer uma relação entre ela e o que está a acontecer. Nesse aspecto acho que ele tem toda a razão. Se calhar há textos em si mesmo tão determinantes, tão ricos como alguns filmes: algumas coisas do tempo dos Cahiers [du Cinéma], do Godard… Lê-se muitas vezes que a crítica é uma coisa que é contra o Cinema; eu acho que, pelo contrário, a crítica está sempre a favor do Cinema, ligada a ele quase umbilicalmente, em alguns casos como se fossem a mesma coisa.

 

Sem querer cair no cliché que dita que o crítico é o artista falhado, nunca teve vontade de dar o salto para o outro lado?

 

Não. Tive a oportunidade de escrever um pouco sobre isso, sobre o que é criticar, numa edição recente da revista dos Artistas Unidos, e expliquei que para mim sempre foi muito claro que o meu interesse no Cinema era um interesse de espectador, ligado à contemplação. Devaneios todas as pessoas têm, escrevem poemas e não sei quê. Mas nunca tive qualquer desejo de fazer filmes ou de ter outra ligação com o Cinema do que aquela que tenho, assim como suponho muitos críticos de Pintura têm uma ligação com ela sem alguma vez terem pintado ou tentado pintar um quadro. Uma coisa não tem que pressupor a outra. O que não quer dizer que se algum dia aparecer uma oportunidade para ter outro envolvimento não o faça.

 

Mas, pegando na ideia de Adrian Martin, a crítica também tem uma influência, maior ou menor, no Cinema, para além da mera observação de espectador.

 

Sim… a la longue. Se calhar aprendi tanto a ver filmes como a ler textos sobre Cinema. Nesse sentido acho que é verdade, que a crítica pode ter uma influência sobre o Cinema. Os cineastas são pessoas que começaram por ser espectadores e começaram por ler e, portanto, as coisas embrulham-se de uma maneira…

 

E há aqueles que começaram por ser críticos. No caso dos Cahiers, o [François] Truffaut, o [Jacques] Rivette ou o [Jean-Luc] Godard, entre outros, começaram por escrever textos basilares e acabaram por dar o salto.

 

Sim, é isso. Sobretudo, para qualquer pessoa que venha depois, torna-se natural associar os filmes a certos textos. Em termos de visão global sobre a História do Cinema acaba por ser difícil dissociá-los. A produção escrita sobre o Cinema é hoje avassaladora; é quase uma História tão grande como a dos próprios filmes. É tão importante uma coisa como a outra, como dois lados do mesmo espelho, que comunicam de alguma maneira e acabam por formar uma só grande História.

 

Escreve num meio de comunicação social com morte anunciada por muitos. Sente o seu trabalho em risco?

 

Não sei se os jornais vão acabar, penso que apenas se vão transformar…

 

Para onde vai o jornalismo de imprensa?

 

Vai tornar-se uma coisa mais electrónica. Nesse sentido não temo especialmente pelo meu posto de trabalho. Acho que se calhar é ameaçado mais por outras coisas. Imagine-se que este jornal é comprado por um grupo económico que inclui uma distribuidora de Cinema. Torna-se diferente a relação entre os críticos de Cinema desse jornal e os filmes. Sei que já houve problemas no Diário de Notícias, que era da Lusomundo. Começa a haver um conflito de interesses. Não vejo qual seja o interesse de uma grande empresa em estar a pagar a alguém para dizer mal dos filmes que ela está a distribuir, ou para dizer bem dos da concorrência. Acho que os jornais desta ou de outra forma vão andar sempre por aí. O grande problema é a dependência que os jornais têm dos próprios grupos económicos. Já não há jornais independentes, e isso parece-me mais preocupante a longo prazo do que o seu eventual desaparecimento.

 

E a crítica de Cinema? Qual é a sua direcção?

 

A mesma de sempre, suponho. Acho que há uma tecla em que é preciso bater, mesmo que ninguém ouça. Fala-se muitas vezes da ideia de que a crítica reage ao contrário do grande público. Isso é um cliché que não corresponde à verdade, independentemente de algumas vezes acontecer. Mas mesmo quem diz isso não leva a conclusão ao extremo, que seria o reconhecimento de uma certa utilidade à crítica, que é chamar a atenção para os filmes que ninguém vai ver, que não têm grande publicidade, que não aparecem nos noticiários da televisão. Parece-me uma utilidade mínima, mas que só por si já lhe dá alguma justificação. Não é necessariamente fazer coro da maioria, se calhar é dizer: “Enquanto vocês estão todos a ver aquele filme que toda a gente sabe que existe porque há trinta mil painéis espalhados pela cidade, naquela salinha há um que também vale a pena”. Se isso não é útil não sei o que será.


Fábio Jesus às 23:58
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